Portugal constitui-se essencialmente como uma parte da civilização europeia. Esta é uma das ideias-chave do livro, a que dei especial atenção no capítulo 4, intitulado precisamente “Europeus”. Embora tenha sido no mar que Portugal encontrou a força que lhe possibilitou escapar à atracção centrípeta de Castela, e tenha sido também através do mar que Portugal se tornou num protagonista da História Mundial através do desencadear dos Descobrimentos, o país e os seus dirigentes, bem como os seus cientistas e os seus artistas, nunca voltaram as costas à Europa. Esta tradição desajustada da realidade já se manifesta nas crónicas de Rui de Pina e de Damião de Góis, pois nunca relacionam as decisões dos reis portugueses com a conjuntura hispânica ou com a europeia. Por exemplo, narrando o início da campanha de Tânger, em 1437, Pina critica o rei por ter enviado apressadamente menos de metade do exército previsto para África, mas ignora a conjuntura diplomática desse ano em que o rei de Castela acabava de obter uma declaração papa em como Castela era a única monarquia descendente dos visigodos, o que suscitou rumores de que Portugal lhe devia entregar Ceuta (antiga cidade visigoda), o que levou D. Duarte a enviar uma carta muito dura ao papa ameaçando com a guerra se o Sumo Pontífice apoiasse as manobras castelhanas; de igual modo Góis explica o inesperado e estranho casamento de D. Manuel com D. Leonor referindo a existência de uma tensão entre o rei e o príncipe, mas sem explicar quais eram os interesses de Carlos e dos Habsburgos nesse negócio.
O deslumbramento do Império, e a política de neutralidade face aos conflitos europeus desenvolvida duradouramente pela monarquia, ajudou a criar este mito de que Portugal se desligara da Europa, mas os factos na sua simplicidade e multiplicidade demonstram inequivocamente o contrário. Encontrarão a justificação deste meu argumento em muitas passagens do livro, mas apresento-vos aqui dois dos testemunhos mais eloquentes e que, por isso, correspondem às fotografias 31 e 32 do livro.
Trata-se do túmulo do infante D. Henrique, no mosteiro da Batalha, e da célebre janela da sacristia do convento de Cristo, em Tomar, mandada edificar e decorar por D. Manuel I. Estas duas personagens são, provavelmente, as que eu conheço mais aprofundadamente, pois escrevi as suas biografias; ambos se notabilizaram e imortalizaram pela sua relação com a expansão ultramarina, mas ao estudá-los percebi que tanto um como o outro focaram principalmente as suas vidas nos assuntos internos, na relação do país com a Europa e na sua própria afirmação no contexto europeu. Neste caso, o túmulo foi decorado de acordo com a vontade do infante e a janela foi ornamentada como o rei ordenou.
Assim, o infante D. Henrique fez-se representar com o escudo de Portugal, por ser membro da família real, e com o escudo da Ordem de Cristo, de que foi governador. Ao centro acrescentou o símbolo da Ordem da Jarreteira, uma ordem honorífica inglesa, em que foi admitido em 1442. No seu túmulo não há nenhuma alusão às navegações. D. Manuel I, por sua vez, fez esculpir ao lado da janela, à esquerda, um colar de cadeias que simboliza a Ordem do Tosão de Ouro, que lhe foi concedida por Carlos V, em 1518, aquando do seu terceiro casamento; à direita a fivela representa a mesma Ordem da Jarreteira, que distinguira igualmente o infante D. Henrique. Também neste caso não há nenhuma alusão nem às navegações nem às conquistas no Índico.
Em suma, através da pedra, quer D. Henrique quer D. Manuel I perpetuaram a sua voz e falam connosco para nos dizer que tanto um como o outro se viam acima de tudo como príncipes da cristandade … europeus.